SEJA VOCÊ MESMO. MAS NEM TANTO.

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Freud

Dentre as falácias que infestam os discursos na vida social e nas redes sociais, especialmente o pensamento positivista, potencializado por livros de auto-ajuda (embriões da grande “onda coach” que se prolifera Internet a fora – convencendo a muitos de que é possível mover uma cadeira de lugar usando a força do pensamento), uma das mais absurdas se revela em diferentes frases, mas com a mesma mensagem:
“Não ligue para o que os outros pensam”; “não queira agradar ninguém”; “o que você faz da vida é problema seu”; etc. Calma! Não vou dizer aqui que os outros devem determinar nossa vida, ações e destino. Mas essas frases desviam o significado de “seja você mesmo” e contêm heresias. Alicerçadas por verdades, distorcem a realidade de maneira irresponsável.

Primeiramente, porque trabalha com um conceito subjetivo, tratando-o como concreto, o EU.
Seja você mesmo… Mas qual “você”? Quem é você? O que é você? Você sabe?
Você é aquilo que acredita ser? É aquilo que pensa ser?
E se eu acredito que sou um enviado divino para curar pessoas? E se acredito que sou extraterrestre?
Se professo que sou um viajante do tempo? Qual a vantagem de “ser eu mesmo”?
Eu também posso ser arrogante, prepotente, racista, xenofóbico, violento, sendo eu mesmo… E aí?

Em segundo lugar, trata o que os outros pensam como, necessariamente, uma afronta ao Eu. Ok, os outros pensam muitas coisas sobre nós, e muita coisa do que pensam pode não ter fundamento. Mas isso não significa que nada tenha fundamento. Eu posso achar que canto bem, que sei seduzir, que minha opinião sem embasamento faz todo sentido, e estar enganado. Engano esse que se descobre pelo embate, pela presença do diferente, do outro. Eu posso estar sendo simplista, inocente, teimoso. Por incrível que pareça, eu posso estar errado! Não seria viável permitir-me aprender, corrigir, rever?

16920049_yOWFSEm terceiro lugar, e aqui talvez a razão mais complexa, esse discurso é surreal. Deixemos de lado a crença narcísica de que somos sujeitos altamente racionais. Freud destituiu o homem deste lugar. Agora acrescente a isso o fato de que, logo ao nascer, um de nossos primeiros desejos é o de agradar o outro. Quando nascemos, pasmem, o mundo já existia. Somos lançados nesse emaranhando de seres, objetos, sentimentos, sensações e exigências. Achar que você ficará imune ou indiferente a isso é psicose.

IDEAL DO EU
Quando um bebê nasce, a maioria dos pais já escolheu seu nome. O nome que você vai carregar para o resto da vida foi escolhido por outro. Quando você veio ao mundo já haviam escolhido algumas roupas, a cor da roupas, do berço, os desenhos no cobertor. Escolheram a hora em que você deveria dormir, o que comer, quando comer, o que assistir, qual seria o brinquedo ideal para você.
E não se trata apenas de uma ação do outro. Você desejou (talvez ainda deseje) corresponder a esta expectativa. Isso se chama “ideal do eu”. Sim, nós somos constituídos também de uma necessidade de agradar o outro, de maneira instintiva (o termo correto seria pulsional). Os pais investem sua atenção nos filhos e criam expectativas. Muito de nossos conflitos residem na escolha entre agradar a nós mesmos e frustrar os pais, ou abrir mão do próprio desejo para agradá-los. E não é fácil se livrar assim do desejo do outro. Aliás, a frase atribuída a Jacques Lacan, refere-se a isso: “o desejo do homem é o desejo do Outro”. A dificuldade em se desvencilhar desse desejo não vem apenas da força da repressão externa, mas também pelo impulso do próprio ego de ser amado, de ser aceito, de pertencer.

Agradar o outro também diz respeito ao sucesso das relações. Imagine alguém se relacionando comconstratransferencia você e dizendo “eu sou assim mesmo, aceite ou deixe”. Sem concessões, sem acordos, sem tentar te agradar.
Eu sou assim mesmo: Não gosto de ir a restaurantes, não gosto de baladas, rolês, filme. Não gosto de almoçar na casa da sogra, não gosto de shopping, não mando flores, não dou presentes, não faço tarefas no lar, etc. Aceite o deixe. Isso não é relacionamento, é narcisismo.

O ápice do narcisismo não é optar por estar só, mas escolher uma cópia de nós mesmos para não precisar encarar o diferente, o novo, o outro. Assim, ao menor sinal de que eu não poderei ser eu mesmo 100%, o tempo todo, eu fujo.
A realidade é diferente. A gente abre mão de dormir para agradar um filho, abre mão de fazer uma tatuagem para agradar a mãe, abre mão de viajar para fazer companhia ao parceiro que não pode tirar férias, a gente faz concessões. O importante é que elas não custem nossa própria saúde física, emocional e financeira.

Imagine um mundo com sete bilhões de pessoas “sendo elas mesmas” o tempo todo. Esqueça! A sociedade nasce justamente da privação dos nossos desejos. Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud expõe o antagonismo intransponível entre as exigências pulsionais do indivíduo e as da civilização. O desenvolvimento se dá por meio da renúncia do indivíduo à grande parte de seus anseios em prol do grupo.

2656287139_beef61b40e_zPara Thomas Hobbes o homem é essencialmente mau, para Russeau, a sociedade corrompe o homem que, por essência, é bom. Freud não defendia, necessariamente, uma essência humana. Mas, independente de quem esteja certo, o homem social é esse ser invejoso, corrupto, egoísta, narcisista, avarento, promíscuo, violento, cruel. Não podemos ser, ter e fazer o que queremos sempre. Por que, acredite você ou não, nossos desejos ocultos, guardados no fundo da estrutura psíquica, não são nobres, altruístas, de pleno de amor.

Sim, tentar agradar a todos nos escraviza. Tentar ser o que não é nos adoece. Não ter identidade nos imobiliza. Mas não da para viver numa bolha. Se queremos ter amigos, família, parentes, emprego, relações, precisamos nos adaptar, ceder às vezes, aprender a viver em sociedade. Do contrário, seremos Narcisos, presos à beiro do rio, inertes e aquém do mundo à nossa volta.

Alessandro Poveda
Psicanalista SAC
(11) 94945-8735

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