A palavra Fetiche deriva do termo português feitiço, que, por sua vez, tem origem no latim “factícios” (fictício, artificial). O termo é atribuído ao escritor francês Charles de Brosses, que, por volta de 1750 o teria utilizado pela primeira vez para referir-se a objetos religiosos de caráter místico, mágico, poderoso. O termo acabou sendo utilizado em diversas disciplinas, como antropologia, sociologia e sexologia, além de ter seu significado ampliado. No senso comum, fetiche está ligado a qualquer fantasia – aliada ou não a um ritual – cuja função é estimular, desenvolver ou ampliar o desejo sexual. E isso inclui objetos, roupas, acessórios, alimentos ou partes específicas do corpo.
Para a psicanálise, embora o termo também tenha essa conotação, seu uso está mais associado às parafilias, ou seja, a preferência por práticas sexuais não necessariamente vinculadas aos genitais, ou seja, que destoam de uma sexualidade biológica.
Freud (além de outros autores) investigou as origens da formação de um fetiche, e inferiu se tratar do resultado da ação do mecanismo de defesa da DENEGAÇÃO (ou renegação) da castração. O resultado seria a eleição de um objeto como substituto para o falo ausente na mãe. Assim, o fetichismo não estaria ligado às neuroses – cujo mecanismo de defesa constitutivo é o RECALQUE, ou às psicoses – caracterizado pela FORACLUSÃO, mas a outro tipo de configuração, as perversões. Por força dessa rejeição à castração, segundo Freud, haveria uma espécie de divisão do ego, em que parte reconheceria uma realidade ao mesmo tempo em que a recusaria: A negação da negação.
Este é o ponto de vista que aqui nos interessa. Para o Fetichista, o objeto não se apresenta como um simples estimulante sexual, mas como elemento FUNDAMENTAL do encontro. O fetiche é condição para a satisfação sexual, sem o qual todo o restante declina em valor ou sentido. O fetiche como perversão transforma a presença do sapato, da roupa, do perfume, ou da parte específica do corpo num elemento sagrado, porém, entrelaçado à cena sexual de forma que, ainda que haja prazer sexual, a satisfação não seja atingida sem ele.
O fetiche pode exceder o campo do mero prazer por meio de fantasias de satisfação. Quando isso ocorre, diferente da romantização às vezes folclórica presente no cinema, na TV e na cultura em geral, o fetichismo pode representar sofrimento psíquico, especialmente quando excessivamente afastado do comportamento moralmente aceito ou das normas legais, ou quando impossibilitado pela dificuldade do acordo entre as partes. Nesses casos, ele se torna literalmente um feitiço, um objeto fictício, mágico e poderoso. A respeito disso, Freud afirma:
“A situação só se torna patológica quando o anseio pelo fetiche passa além do ponto em que é meramente uma condição necessária ligada ao objeto sexual e efetivamente toma o lugar do objetivo normal, e, mais, quando o fetiche se desliga de um determinado indivíduo e se transforma no único objeto sexual”.
Assim, podemos pensar o fetiche em três níveis. Um nível da fantasia e do acréscimo/complemento à vida sexual, em que o indivíduo não depende do objeto para satisfazer-se. Um segundo nível, em que ele possua proeminência em relação aos demais objetos da cena sexual, o que pode ou não trazer algum desconforto/sofrimento caso não seja possível sua realização. E um terceiro, onde exista a impossibilidade de realização e/ou essa impossibilidade ou a própria realização promova prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas da vida do indivíduo. Isso ocorre em padrões de excitação obrigatórios ou muito intensos, ou ainda, que envolvam compulsões e consumismos.
Um ponto importante, e que diferencia o fetiche parafílico de um mero jogo sexual, é o fato de que há um significado particular. Segundo Freud “o significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista”. Esse fato enfraquece o olhar generalista sobre a natureza do fetiche. As razões pelas quais um objeto se apresenta como fundamental para um indivíduo não são as mesmas para outro. De um modo geral, a maioria das pessoas que revelam possuir algum fetiche não se enquadram na definição mais extrema do termo nem atende aos critérios clínicos da definição de um transtorno parafílico. Todo fetiche consiste em uma parafilia, porém, nem toda parafilia é considerada um fetiche. Do mesmo modo, nem toda parafilia pode ser classificada como patológica.
Embora a psicanálise não trabalhe com diagnósticos nesse sentido, convém citar que, de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), os critérios para determinar um Transtorno Parafílico são: A – A Natureza da parafilia, B – Consequência negativa, e C – Ser maior de 18 anos. Também é necessária a presença dos sintomas por um período mínimo de seis meses. Dentre as consequências negativas estão: a presença ou ausência de sofrimento, o prejuízo ao funcionamento social e/ou profissional e em outras áreas da vida. Atender, exclusivamente, o critério A evidencia a parafilia, mas não o transtorno parafílico. Segundo a psiquiatria o diagnóstico prescinde o cumprimento dos critérios A e B pelo indivíduo.
Algumas práticas sexuais podem ou não se constituir como fetiche de acordo com a descrição acima, as mais comuns são: Voyeurismo: Espiar outras pessoas em atividades privadas; Exibicionismo: Expor os genitais; Travestismo: Usar trajes do sexo oposto; Fetichismo propriamente dito: Uso de objetos inanimados específicos, trajes, alimentos ou foco específico em determinada parte do corpo (parcialismo). Em alguns casos o fetiche está automaticamente vedado ao sujeito por conta de questões legais, morais e éticas, como no Frotteurismo: Tocar ou esfregar-se em indivíduo sem consentimento; Pedofilia: Foco sexual em crianças e Zoofilia: Foco sexual em animais. Nesses casos é de extrema importância o acompanhamento desde o início da percepção do desejo, a fim de evitar danos a terceiros e ao próprio indivíduo. Este acompanhamento envolve psicoterapia e/ou intervenção medicamentosa, dependendo da natureza e do grau patológico.
Nos casos em que o fetiche não se caracterize como patologia e/ou infração legal, o indivíduo deve sempre observar a viabilidade e a consensualidade de sua prática, buscando apoio psíquico/emocional caso implique em sofrimento.
“O substituto do objeto sexual geralmente é uma parte do corpo (os pés, os cabelos) muito pouco apropriada para fins sexuais, ou então um objeto inanimado que mantém uma relação demonstrável com a pessoa a quem substitui, de preferência com a sexualidade dela (um artigo de vestuário, uma peça íntima). Comparou-se esse substituto, não injustificadamente, com o fetiche em que o selvagem vê seu deus incorporado”.
(Obras Completas de Sigmund Freud – Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vol. VII: 1905 / Fetichismo. Vol. XXI: 1927)
Alessandro Poveda Psicanalista SAC (11) 94945-8735